terça-feira, 24 de março de 2015

O tempo suspenso das trocas preciosas (2)

Há um mês pisei em solo brasileiro, depois de um semestre no mundo europeu. Muita gente me pergunta se já estou com saudades de lá. Eu digo que não, que ainda não matei por completo a saudade daqui.
Pareceram uma eternidade esses 180 dias no exterior. Mas agora já me readaptei à vida, e sinto que a viagem passou rápido e que não vivi tudo que eu queria lá. Parece que o tempo do intercâmbio foi um tempo suspenso. Suspendeu minha vida no Brasil, porque tudo ficou me aguardando exatamente como deixei. As pessoas, os lugares, os lazeres, os estresses, o estudo, o trabalho. Retomei tudo exatamente de onde parei.
Kiara Terra foi quem falou do “tempo suspenso das trocas preciosas”. Sabe aquele momento de êxtase em que você experimenta uma sensação indizível? Pode ser uma conversa, pode ser um riso, pode ser uma troca de olhares ou um abraço intenso. É um momento em que o mundo ao redor para, deixa de existir – e você só vê aquele momento, como se ele fosse o mundo inteiro. O seu mundo.
A Europa foi assim. Não foram seis meses de sensações indizíveis, é claro. Mas foram seis meses suspensos de trocas preciosas. Intercâmbios com a cidade, com a cultura, com os estudantes, com as aulas, com os professores. Infinitude de preciosidades – é o que esse intercâmbio representou para mim. A preciosa saudade, os preciosos lugares históricos, as preciosas viagens, as preciosas amizades, a preciosa língua italiana. Também o precioso aprendizado, o precioso sofrimento, os preciosos choros de tristeza ou de saudade ou de desespero. O precioso crescer.
Porque a vida se faz dentro da possibilidade preciosa de crescimento. De ser melhor do que se foi ontem. Num processo contínuo e infindável.
Sabe por que se classificam determinadas pedras como preciosas? Porque elas sofreram um processo químico, de milhares de anos, que envolve elementos certos, temperatura certa, pressão certa.
É disso que se trata uma vida preciosa. É a vida que se permite adentrar nesse processo complexo de se melhorar e de acreditar na melhora da humanidade.
Acho que a Europa me fez melhor. Não no sentido de ter me tornado melhor do que os outros. Mas no sentido de me tornar um pouco mais bem preparada para o mundo adulto. Um pouco mais bem preparada para encarar o mundo lixo e para lidar com pedras nada preciosas que com certeza encontrarei por aí.
A Itália não é pedra bela e perfeita, como eu já disse em outro texto. Mas é uma pedra que já passou por um processo de milhares de anos – restando apenas poli-la para encontrar nela um brilho e um quê de preciosidade.
Assim como podemos encontrar um quê de preciosidade na humanidade. Se continuarmos tentando.

Que a tentativa não seja falha. Que a humanidade não se canse. Que não seja tarde demais.

sábado, 24 de janeiro de 2015

O tempo humano da imprecisão


Um semestre parece pouco quando se está nos afazeres rotineiros de anos consecutivos. Dia após dia de correria. Quando vimos já passou um mês. E logo depois já chegou a próxima estação. E logo já estamos estudando para as provas de fim de semestre. E já começa o outro semestre. E logo, logo já é natal.
O fato é que o relógio não é senão medidor automático e racional do tempo. O tempo que a gente vê passar. Mas na verdade o tempo não é para se ver, e sim para se sentir, com os acontecimentos e com a irracionalidade do coração.
E aí não há relógio no mundo que dê conta da imprecisão dos sentimentos humanos.
Os primeiros meses aqui em Roma passaram tão lentamente que eu pensava que um semestre fosse durar uma eternidade. Mas, logo que me adaptei, o ponteiro do relógio acelerou, e hoje falta apenas um mês para o meu retorno. A vida passa rápido quando se está adaptado a ela.
Durante esse semestre, tanta coisa perdi em Goiânia. Casamento da mãe de uma grande amiga, aniversário de tantas amigas, do amor, de duas irmãs, do meu pai, do meu cunhado, das minhas avós e das minhas tias, formatura da minha irmã... E chegarei em Goiânia uma semana depois do aniversário da minha sobrinha.
Além de tudo isso, perdi dois momentos muito importantes nessa semana. Um deles é hoje: o aniversário de casamento de 40 anos dos meus pais. 40 anos! Quatro décadas. É uma vida ao lado de alguém, não é? Décadas que com certeza, depois de adaptados ao casamento, meus pais nem viram passar.
Fico imensamente feliz e gratificada por ser parte dessa família e ser cria desse maravilhoso casal. Quem os conhece sabe o quanto eles são exemplo. De casal, de pais, de avós, de provedores e mantenedores de uma família unida e feliz de quatro filhas, duas netas e um genro.
Papai, mamãe, hoje lhe digo que espelhadas em vocês nós também somos filhas exemplo (ou ao menos tentamos ser). E por isso estamos preparando para vocês um jantar nesse dia tão especial. Infelizmente não estou aí para fazer parte dessa comemoração, mas quero dizer, ainda que de longe, que vocês são referência na minha vida. Que me espelhando em vocês eu quero completar 40 anos de uma união feliz. Que vocês são merecedores de chegarem aonde chegaram, pois batalharam, se uniram e se amaram em cada dia desses 40 anos. Com brigas de vez em quando, é claro. Mas com uma paciência e um amor raros de se ver.
Parabéns pelos 40 anos e que haja ainda mais 40 a se viver e comemorar.

Hoje escrevo também para parabenizar a minha turma de graduação, que se formou antes de ontem. Outro momento de que eu queria muito ter feito parte. Mesmo de longe eu acompanhei, pelo site da TV UFG, a cerimônia de colação de grau. E me emocionei junto com vocês.
Meus parabéns vão especialmente para as cinco Girls que se formaram. Amigas que me conquistaram aos poucos, as Girls são hoje um grupo de dez meninas que se amam e se entendem e vivem uma imensidão de momentos bons e ruins juntas. Metade delas se formou agora. A outra metade resolveu adentrar no mundo do intercâmbio e por isso se forma só no ano que vem.
Para as Girls que já cumpriram essa jornada da graduação, desejo sucesso e felicidade. Desejo principalmente que vocês saibam usar da melhor forma possível esse pedaço de papel que lhes confere o status de bacharéis em Direito. Esse papel tem poder, vocês sabem disso. Um papel que pode fazer as pessoas erroneamente lhes chamarem de “Doutoras”. Um papel que imprime não apenas palavras, mas principalmente status e poder e condão para dizer (ou ditar) a dita “verdade”. Diante disso, desejo que vocês não deixem o poder lhes subir à mente. E que saibam usá-lo a favor do bem. Que saibam escolher carreiras de acordo com o que dá estabilidade financeira, mas principalmente de acordo com o que lhes dá prazer e felicidade e luta por um mundo menos lixo.
Foram cinco anos de muita, muita, muita, muita coisa vivida e experimentada. Parece que foi ontem que eu, toda tímida, fui aos poucos me aproximando do grupo (tá, não foi tão aos poucos, né? Foi uma loucura de convidar quase desconhecidas para fazer um trabalho na minha casa kkk). O importante é que vocês acolheram essa menina tímida e estranha, e lhes sou eternamente grata por isso – e por tanto mais.
Foi uma a uma que eu conquistei. Lembro-me bem. Eu e Sofia já éramos amigas quando, através de uma amizade com a Io, entramos para o grupo. Aos poucos me aproximei da Vivi, que com muita facilidade conseguia me arrancar várias palavras e desenvolver um diálogo tranquilo. Logo me aproximei da Lets, com nossa paixão pela criticidade e pela Filosofia e pelo cinema (lembra dos filmes no Campus, Lets?). E depois me aproximei da Samis, que se tornou amiga tão próxima que em pouco tempo me vi compartilhando os segredos mais íntimos com ela. E depois a Nanda e a Ana Paula e a Camila e a Nath. Fui descobrindo aos poucos a beleza de cada uma de vocês, e fui me aproximando, e fui me encantando.
Meninas, vocês todas são incríveis e são únicas. E me aperta o peito saber que não vou me formar com vocês e que agora seguiremos rumos diferentes e não nos veremos mais todos os dias nem sairemos para almoçar no Júnior’s ou no Sal da Terra ou no Bocaccio. Não mais precisaremos salvar a pele uma da outra nos trabalhos e provas e chamadas. Não mais tomaremos todo dia um café com pão de queijo ou empada no Direito ou na Educação.
Mas continuo na Biblioteca, e espero encontrar todas vocês lá (para eu escutar os funcionários falando mal de vocês, as novas concurseiras que lotam a Biblioteca e abusam da wifi com as videoaulas kkk).
Espero não me afastar de vocês. Espero que a gente marque encontros, saídas, visitas nas casas umas das outras. Quero ainda muitos dias de Karaokê e noites de filmes ou de barzinhos. Quero dias na chácara do Ricardo e na minha chácara e na casa da Vivi e na casa da Samis etc etc etc.
Quero muito viver muito com vocês.
Para as Girls que se formaram, muita sorte e muita força e muita garra e muito juízo. Para as Girls que ficam mais um ano na FD comigo, nos encontramos ainda diariamente por mais um ano, para nos dar suporte e juntas estudarmos para a OAB e os concursos da vida.
Porque, vocês sabem, somos um grupo de dez mulheres que conquistará o mundo.

Who run the world? GIRLS!

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Gratidão

Aquela sensação não conseguia se manter ali dentro. Era sensação de alegria. De dever cumprido. De "cheguei à reta final". 
Fiz meu último exame ganhando elogios do professor e um certo orgulho por ter escrito um artigo todo em italiano. Aquele professor que parece meu pai em calmaria e ao mesmo tempo transparece a serenidade de um padre. Ele me fez querer sair dançando e cantando naquela leve chuva.
Me contive, é claro. Mas não contive o sorriso e saí de lá decretando FÉRIAS. E férias de fato. De tudo. Ao menos por algumas semanas, antes de (re)iniciar a vida de trabalho e estudo incessante.
Foi (tem sido) indizível a experiência do intercâmbio. E no entanto tenho tanto a dizer.
Hoje me limito a dizer Obrigada. A Elisa, Alessandra e Martina, as incríveis funcionárias da área internacional da Sapienza que não medem esforços para ajudar os intercambistas e nos fazer sentir bem e minimamente em casa. Aos professores, que em menor ou maior grau me propiciaram aprender a língua italiana e experimentar conhecimentos além do estrito conteúdo jurídico que tanto me fatiga. Aos colegas e amigos que fiz nessa viagem, com quem tanto aprendi e sorri. A Samara, que não apenas apoiou minha candidatura, mas foi verdadeiro braço direito na correção dos inúmeros formulários em inglês. A Vivi e Ioio que toparam essa aventura comigo (e que ficam mais um ano me acompanhando na graduação). A Lorrayne, que é não só suporte aos momentos mais difíceis, mas verdadeira companheira de todos os meus passos aqui, sejam certos sejam em falso. E à família, claro, que mesmo de longe ajuda e liga todos os dias para amenizar a saudade. 
Com gratidão inicio a etapa final dessa aventura. Aproveito os últimos dias de passeio. Organizo a papelada dos procedimentos de retorno. Ajeito as coisas na mala. Pego a memória do bolso, tiro uma foto e guardo no coração.
Aos que ficam para mais alguns meses, boa continuidade. Aos que encontro em 23 de fevereiro, meu até logo, cheio de saudade e amor. 

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

A Roma com que (nunca) sonhei


É engraçada a visão que os brasileiros têm da Europa. Como se fosse um continente com mil cidades lindas, onde tudo é perfeito, onde todo mundo é educado, onde tudo funciona perfeitamente bem. Um visão meio Disney. Um mundo cor de rosas. Todos ricos e felizes para sempre.
“Nossa, sua filha está fazendo intercâmbio na Itália? Que chique!” “Poxa, doutorado na França? Não é para qualquer um, hein?” “Foi estudar na Espanha? E ainda ganhou bolsa? Deve estar passeando pela Europa toda.”
Lamento dizer que não é bem assim. A primeira vez que se vem se encanta com tudo. Lembro de como foram encantadoras as duas vezes que vim passar quinze dias na Europa. Na terceira vez, passei um mês. E foi quando conheci a Itália e a sua capital. Roma, nossa, Roma sempre foi um sonho. Um dos principais palcos da Antiguidade, onde se concretizou e onde há resquícios de tudo que aprendemos no Ensino Médio sobre Idade Antiga e Idade Média.
Quando pisei no centro de Roma, dois anos atrás, me deixei levar pela magia de estar na cidade que em cada esquina tem alguma ruína ou algum um museu – e que por si só é um imenso museu.
Foi de fato encantador. Foi de fato concretizar sonhos. E dessa viagem veio o sonho de voltar, conhecer melhor, quem sabe morar por alguns meses.
E cá estou, dois anos depois, morando em Roma.
A linda Roma, a encantadora Roma, uma das cidades mais visitadas do mundo.
Sim, ela é de fato bela. Mas não tanto quando se começa a perceber a cidade como moradora daqui.
Sinto informar que mendigo, pobreza e roubo não são exclusividades brasileiras. Meu celular foi roubado no réveillon (e cadê a virada com esperança de ser uma pessoa melhor no ano que se inicia?) e sempre ouço histórias dos tais batedores de carteira, nos ônibus, nos metrôs, em todos os lugares com grandes aglomerações de pessoas e, principalmente, de turistas.
Também não me canso de ver infinitos pedintes em cada esquina, e no metro e na porta das igrejas e no Vaticano. No Vaticano eles ainda são capazes de ajoelhar e ficar em posição de oração, deixando apenas um bilhetinho ao lado de um copo pedindo ajuda e ansiando por pegar turistas que se sentem no dever de dar uns trocados para os pobres coitados – e quem negaria fazer uma boa ação na casa de Deus e do Papa?
Também não é exclusividade brasileira a tal da burocracia. Na verdade, a italiana me parece bem pior. Para abrir uma conta, gastei a manhã inteira (e meus outros amigos ficaram o dia inteiro e ainda tiveram que voltar no dia seguinte) e tive que assinar zilhões de papéis (sem exagero, assinei umas vinte vezes, e depois da décima eu só fazia um rabisco que acho que nem de longe passaria no reconhecimento de firma).
Para fechar um contrato de internet até que não se exige muito: um documento e o códice fiscale (código como o CPF, mas bem maior e com mistura de letras e números). Mas para rescindir o contrato não é nada – nada fácil. Para quem acha um saco ficar meia hora com a atendente da Net para cancelar a linha ou mudar o plano, experimente fazer essa solicitação na Itália: você precisa escrever uma carta e enviá-la (através da nada eficiente Posta, os Correios da Itália) para o diretor da operadora na cidade da Sede da Empresa com antecedência mínima de 15 dias justificando a solicitação de cancelamento.
E para quem reclama das taxas bancárias brasileiras, aqui se cobra até mesmo para transferir para contas do mesmo banco – e do mesmo titular! Cada transferência no caixa eletrônico custa um euro. Na boca do caixa tudo é mais caro e ainda tem mais fila e funcionários irritados e rabugentos. (Já imagino a dor de cabeça que será cancelar a conta do banco)
Não me esqueço do dia em que fui fazer a minha primeira transferência na boca do caixa. Depois de uns 40 minutos esperando para ser atendida, eu tive que preencher um formulário, colocando os dados da conta e o valor da transferência e, pasmem!, a quantidade de notas de cada valor. Exatamente: têm lá uns quadradinhos onde você põe quantas notas de 10, de 20 e de 50 euros você está entregando para o Caixa. Vai entender.
E não chegou ainda para eles o conceito de Internet Banking como forma de diminuir o trabalho dos funcionários e o tempo de espera nas filas. Para ter acesso ao serviço,  eu não posso simplesmente me cadastrar em um caixa eletrônico. Tenho que ir no atendimento ao cliente (e lá se vai mais no mínimo meia hora de espera) para solicitar, pagar cinco euros – e ainda posso acessar apenas meu saldo, sem poder fazer transferências ou qualquer outra movimentação (ao menos para quem é imigrante).
Deu para ver que ser imigrante aqui não é das melhores coisas né?
Também pudera. A Itália está passando por uma imensa crise. Estudantes universitários sabem que não terão emprego ao formar. Eles vão para a faculdade sem saber do futuro – e muitos tentam emigrar para outros países europeus (principalmente os italianos do Sul, onde a situação é pior ainda).
É assim: quem mora em cidades pequenas (os chamados paesini) vem para Roma tentar ganhar a vida. Quem mora em Roma vai para Milão. E quem é de Milão vai para outros países da Europa. Enquanto os indianos e chineses estão todos vindo para qualquer lugar da Itália. (sim, meus caros, esse é o nosso admirável mundo pós-moderno)
Também não chegou na Itália (ao menos não em Roma) o conceito de bom atendimento. A gente vai pedir alguma coisa para os atendentes, e eles sequer olham na sua cara. E quando olham é com cara feia. Não sabem sorrir. Não sabem dizer “Buongiorno”. Dizem um sério “Prego”, você pede o que quer, dá o dinheiro, eles jogam o troco e o cupom fiscal no suporte em cima do balcão e passam para o próximo cliente.
Vai ver é por isso que tem tanta loja e empresa falida por aqui. Eles acham que clientes brotam, não sabem que têm é que conquistá-los.
Mas o conceito que chegou aqui foi o de agilidade nas filas dos supermercados. Os funcionários do caixa passam os produtos em uma velocidade impressionante. Enquanto você pega seu cartão dentro da carteira, os produtos já estão todos lá para você por na sacola (que é sempre paga aqui). São tão eficientes que se acumulam mais clientes guardando as compras do que aguardando atendimento (não entendo porque não colocam também outro funcionário eficiente para ajudar a embalar).
Outra lenda a se desmentir é a do transporte público. Sim, ele pode funcionar relativamente bem em algumas cidades europeias, mas em Roma ele é caótico. Existem apenas duas linhas de metrô que se cruzam na sempre cheia Estação Termini, também estação de trem e terminal de ônibus e ponto de táxi e casa dos moradores de rua. (Agora estão construindo uma terceira linha, que já está ativa em alguns poucos pontos, mas que só ficará totalmente pronta daqui váaarios anos.) Se você não mora perto do metrô, precisa se virar com os ônibus (que com frequência estão lotados e são demorados por conta do tráfico – também caótico) ou com os trams (bondes de superfície, tão lentos que meus amigos dizem que compensa mais ir andando).
Eu sofro é com os tais dos trams. Ok, eles passam perto da minha casa e com uma frequência razoável nos dias de semana. Mas experimente pegá-lo em horário de pico (eu o fiz durante vários meses para ir para aula às 8h da manhã). É uma coisa meio darwiniana – uma verdadeira luta pela sobrevivência. Várias pessoas esperando no ponto e, enfim, passa um tram. Lotado – mais lotado do que o temido ônibus 020 em Goiânia. Descem duas pessoas, sobem cinco e não cabe mais nem uma mosca. E as outras 15 que não conseguiram entrar esperam o próximo – junto a mais uns 10 que estão chegando no ponto agora. E se acumulam pessoas. Você começa a entrar em desespero. Lá pelo terceiro ou quarto tram você consegue embarcar (se for esperto) e lá se vão uns 20 minutos (que mais parecem uma eternidade) para chegar à faculdade sendo espremida e sem conseguir mexer o braço ou a perna – literalmente podendo apenas piscar e (tentar) respirar e não cair durante as freadas. Um dia meu braço estava tão esticado para conseguir segurar em algum lugar que desci do tram até me sentindo mais forte – é quase uma musculação.
Sobrevive quem se adapta, diz a lei. E realmente os romanos se adaptaram. Em meio à muvuca no tram, era normal eu escutar pessoas fazendo piadinha da situação, ou reclamando com o desconhecido ao lado de que o transporte sempre foi assim, ou fazendo planos com o colega ou a irmã para acordar mais cedo no dia seguinte e tentar pegar o tram mais vazio, ou brigando com o cara do lado que o empurrou ou que não quer abrir espaço (como se fosse possível). De fato não deixava de ser divertido. Sem contar que com esse frio tinha muitos dias em que eu, no ponto sofrendo com o vento gélido, torcia para o tram vir cheio e assim eu me esquentar um pouco com o calor humano.
Tudo não passa mesmo de adaptação.
E cá estou, há quase cinco meses me adaptando à cidade de Roma.
Caótica. Mas cheia de História e de estórias para contar.

Não deixa de ser Roma, não deixa de ser linda, não deixa de ser um lugar onde um dia quero voltar (como turista, claro).

From Europe to (L)ove


E de repente ela se viu em plenitude com aqueles sentimentos. Um turbilhão de sentimentos desconhecidos. Ela provou um pedaço, sentiu o gosto – e quis mais. Ansiou por mais. Desejou como criança que deseja o doce que a mãe guardou no alto. Estava fora do alcance.
Mas a menina queria. A menina desejava.
A princípio era só desejo. Mas era desejo novo. Era desejo pela primeira vez saciado.
E quem não quer saciar o desejo?
A criança insistiu. Queria o doce. E não queria apenas uma mordida. Queria inteiro. Queria provar mais, sentir mais. Queria continuar a degustá-lo, queria engoli-lo, fazê-lo parte dela.
E então a menina insistiu. Insistiu naquilo que muitas vezes parecia inalcançável.
Ela não podia desistir daquela sensação que parecia ser a melhor do mundo – e de fato era.
E na insistência ela foi experimentando. Degustando cada vez melhor. Sentindo um novo detalhe no sabor a cada vez que o experimentava novamente.
E o que era desejo se tornou amor.
Porque toda criança é apaixonada por doces. Mas sempre tem um doce que é muito mais do que paixão.
De desejo a paixão. De paixão a amor. De amor a companheirismo.
Companheirismo é o sentimento que acompanha.
Se você vai para outro continente, eu te acompanho – disse o amor. Ao menos tento. Experimento. Provo.
E provamos. Degustamos um sabor muitas vezes amargo. Era o fel da distância.
Mas ao final se sente aquele gosto doce, suave. Aquele gosto que acalma e diz “até aos piores gostos se adapta e em todos eles há um quê de delícia”.
Nos deliciamos então. Aproveitamos. Para fazer novas amizades, para reaproximar as antigas. Para fortalecer laços. Para experimentar a união como nunca.
Porque não é preciso estar lado a lado para unir. De corpos unidos nos tornamos união de almas. E não há terra, não há mar, não há mundo que separe almas unidas.
Que se acompanham dia a dia. Que se integram. Que se entregam. Que entrelaçam. Que se apoiam.
Obrigada pelo doce que você me proporcionou provar. E obrigada por provar comigo a distância por vezes tão amarga – e por me ajudar a torná-la mais digerível.
Obrigada por comigo me unir. Obrigada por me alcançar a alma mesmo de longe.
És com quem degusto a vida. E me delicio – em ti.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Concretude encenada – entre partidas


            Não sei que palavras eu usaria para adjetivar o espetáculo.  Inusitado? Insólito? Talvez. A crueza da vida retratada de modo onírico. Que paradoxo, não? Digo isso porque se amanhã me perguntassem o que vivi hoje, eu bem poderia responder: assisti a um espetáculo, mas me parece que foi apenas um sonho. Um sonho? Mas aquelas histórias, aqueles personagens tão reais, representando cotidianos tão palpáveis! É mesmo uma contradição.
            Entrepartidas. É o nome dessa peça teatral, da Companhia Teatro do Concreto. E poderia eu chamá-la de peça? Ela é em si um todo entrecortado de realidades que por si mesmas eram vários todos complexos. Tanto parecia realidade que no início, todos já na rua ao lado do ônibus ouvindo o diretor falar, um casal começa a brigar, gritar e se agredir. “Nossa, isso vai atrapalhar o andamento do espetáculo”, logo pensei. Até descobrir que ali, no meio das explicações do diretor, havia começado a – inusitada – encenação.
            Logo vi que seriam horas de realidade sonhada que me deixariam confusa, sem saber o que era encenação, o que era ensaiado, o que era improvisado, o que era realidade e o que era ficção.
            Entramos no ônibus. O motorista meio real meio ator nos pede para escrever no papel o que gostaríamos de levar conosco se aquela fosse a nossa última viagem. “Caderno e caneta”, eu escrevi, e também a memória e o olhar. E faço uso disso agora para escrever sobre essa viagem que não foi a última mas que foi tão marcante que é como se o fosse.
            “Não filmem ou fotografem”, disse o diretor no começo. Sinto muito, caro diretor, pois te afirmo que fotografei, sim. Ora, palavra também serve para tirar fotografia do momento, me ensinou Elisa Lucinda. Então escrevo agora como modo de revelar as fotografias que tirei durante Entrepartidas, revelá-las a mim mesma, torná-las mais claras tirando-as através das palavras do obscuro de mim.
            Elisa Lucinda. Ela me presenteou e presentificou nesse espetáculo. Logo nos primeiros minutos, enquanto o motorista contava suas histórias para a moça que pegou uma carona no nosso ônibus, me veio à mente essa linda poetisa carioca. Vi aquela cena como semelhante aos contos de Elisa sobre os taxistas e suas histórias tantas.
            Alguns poucos minutos depois, na primeira parada, na Avenida Goiás com a Rua Um, não é que a moça que não sabe seu nome sua origem e seu futuro pega dentro da bolsa um livro de Elisa Lucinda e recita uma poesia? Realidade ou ficção?, me pergunto novamente.
            Como responder?, se aquelas cenas todas nas ruas e no ônibus, aquelas histórias começaram a me absorver de um tanto que eu mesma já não sabia se meu próprio eu era verdade!
            Vieram novas cenas, novas paradas, novos personagens, novos cenários por entre as ruas, pontos turísticos e casas do centro de Goiânia. O travesti que a cada esquina manifestava seu desejo suicida. Os dois moradores de rua que cuidavam das flores do coreto – o mais velho tentando gentegrandizar as meninices do pequeno que o chamava de irmão. A linda negra sem rumo que recitava poesias para sobreviver – e que era em si mesma poesia pura. A mulher que morava com seus dragões da loucura e da doença, empecilhos à felicidade dela e ao seu desejo de cuidar do filho e morar com ele. A mulher que veio do exterior para visitar a mãe – matar a saudade do interior do ventre materno de onde ela veio. O homem que parte para o exterior deixando a saudade no namorado que fica – só com a tristeza. A mulher que parte para a vida com um homem dizendo adeus à sua namorada.
            Realidades. Encenadas contudo nuas e cruas assim como elas são. Tapas na minha cara. Não foram doces, não. Foram tapas fortes e intensos. Realmente duros. Um pouco amaciados pela contradição realidade-ficção – mas duros.
            Várias vidas retratadas em três horas, o espetáculo vai se encerrando. O motorista vai rodeando a praça cívica e pegando nos pontos de ônibus os atores – aproximando-se da hora de retomarem os seus personagens reais. Chegamos ao ponto de partida, descemos do ônibus, ele se vai carregando em cima o travesti. Aplaudimos. Enquanto isso os atores todos saem imperceptivelmente do nosso meio. Acaba o espetáculo. Sem os típicos aplausos finais e agradecimentos. Nu e cru assim mesmo. E ao mesmo tempo aquilo tudo me parecia uma mágica – uma grande ilusão. Atores histórias e ônibus foram embora. Restaram os espectadores. Apenas nós, encenadores de nós mesmos, sem entender muito a concretude daquilo tudo.
            Olho para o céu. Aquela lua lindamente cheia põe fim ao espetáculo. O espetáculo que ainda assim não se finda – se eterniza em mim me desvelando que a vida – é imensidão.


Larissa Mota

27.out.2012

Roma (in memoriam)

E começa um novo ano. E então começam as promessas. E as lembranças. Memórias. O que é a vida humana senão memórias? Lembro-me de um dos melhores filmes que vi no FICA de 2013, um documentário sobre uma cidade decepada por uma inundação. O que restaram? Memórias, apenas. Os ex-habitantes da cidade contando as suas vidas e a vida da cidade nelas. Como se a cidade fosse um ente querido da família que a morte levou antes do tempo.
E qual é o tempo certo da cidade? De Goiânia, com menos de 100 anos, venho parar em Roma, a cidade que sobreviveu a milênios de guerras, pestes, saques, incêndios, conquistas. A memória da cidade está em cada morador daqui. Cada um deles viveu um pouco da história de Roma e construiu nela um pouco da sua história (ou toda ela).
Lembro-me de uma das experiências mais lindas que tive aqui, logo no começo do intercâmbio. Durante um passeio, eu e meus amigos encontramos um senhorzinho que caminhava às margens do rio. Ele começou a conversar conosco e a “fare il professore”. Nos ensinou tanto da cidade que eu quase que me senti parte dela (ou com vontade de sê-lo). Mostrou-nos que não é um habitante qualquer que vive envolvido com seus mil afazeres e não tem tempo para apreciar a cidade. Ele ama a cidade, assim como os habitantes da cidade inundada. Nos disse mil histórias e nos contou a história por trás de cada estátua, cada monumento, cada palavra ou abreviação escrita em latim que a quase todos parece indecifrável.
E percebo que a vida é não só memórias mas também percepção. É sentido, é sensação. Porque até mesmo a nova cidade de Goiânia pode ser cheia de monumentos históricos e belezas memoráveis, se percebida em sensações, se sentida quase que no tato.
Experimentei-a assim uma vez. Em um espetáculo teatral chamado “Entrepartidas”, talvez o espetáculo mais inusitado e belo que já assisti, em que histórias eram encenadas de modo tão palpável que era impossível acreditar ser ficção. As cenas se davam em vários lugares do Centro de Goiânia, e ao fim de cada cena um ônibus nos levava (nos transportava oniricamente, eu diria) para o próximo palco cênico. [no próximo post, o texto que escrevi logo que saí do espetáculo]
Praça Cívica, Coreto, Avenida Goiás, Rua 20. As memórias da cidade estão ali também. E está ali também a beleza da cidade, em seus jardins e em sua arquitetura e em seus habitantes. Em cada esquina, em cada prédio, em cada rua – memória.
E é o que deixamos e o que levamos de cada cidade. De Goiânia parti trazendo memórias de momentos infindáveis e carregados de amor e saudade. E o que levo de Roma é nada além de memórias. De um lugar em que tanto aprendi, que tanto sofri, que tanto sorri, que tanto vivi, que tanto cresci. De pessoas de que tanto gostei e outras de que desgostei. Dos lugares inesperadamente incríveis que visitei. Das aulas em que tanto aprendi. Dos tapas na cara que tanto levei. Enfim, dos sentidos e sensações que experimentei.
É fato que uma pessoa que viveu seis meses em uma cidade com milênios de história não a marcará tanto quanto a cidade me marcou.
Mas deixo cá minhas palavras como minha marca e minhas memórias. E digo que voltarei.

Quem sabe um dia, quem sabe em anos, Roma se lembrará de que aqui habitei.