sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

A Roma com que (nunca) sonhei


É engraçada a visão que os brasileiros têm da Europa. Como se fosse um continente com mil cidades lindas, onde tudo é perfeito, onde todo mundo é educado, onde tudo funciona perfeitamente bem. Um visão meio Disney. Um mundo cor de rosas. Todos ricos e felizes para sempre.
“Nossa, sua filha está fazendo intercâmbio na Itália? Que chique!” “Poxa, doutorado na França? Não é para qualquer um, hein?” “Foi estudar na Espanha? E ainda ganhou bolsa? Deve estar passeando pela Europa toda.”
Lamento dizer que não é bem assim. A primeira vez que se vem se encanta com tudo. Lembro de como foram encantadoras as duas vezes que vim passar quinze dias na Europa. Na terceira vez, passei um mês. E foi quando conheci a Itália e a sua capital. Roma, nossa, Roma sempre foi um sonho. Um dos principais palcos da Antiguidade, onde se concretizou e onde há resquícios de tudo que aprendemos no Ensino Médio sobre Idade Antiga e Idade Média.
Quando pisei no centro de Roma, dois anos atrás, me deixei levar pela magia de estar na cidade que em cada esquina tem alguma ruína ou algum um museu – e que por si só é um imenso museu.
Foi de fato encantador. Foi de fato concretizar sonhos. E dessa viagem veio o sonho de voltar, conhecer melhor, quem sabe morar por alguns meses.
E cá estou, dois anos depois, morando em Roma.
A linda Roma, a encantadora Roma, uma das cidades mais visitadas do mundo.
Sim, ela é de fato bela. Mas não tanto quando se começa a perceber a cidade como moradora daqui.
Sinto informar que mendigo, pobreza e roubo não são exclusividades brasileiras. Meu celular foi roubado no réveillon (e cadê a virada com esperança de ser uma pessoa melhor no ano que se inicia?) e sempre ouço histórias dos tais batedores de carteira, nos ônibus, nos metrôs, em todos os lugares com grandes aglomerações de pessoas e, principalmente, de turistas.
Também não me canso de ver infinitos pedintes em cada esquina, e no metro e na porta das igrejas e no Vaticano. No Vaticano eles ainda são capazes de ajoelhar e ficar em posição de oração, deixando apenas um bilhetinho ao lado de um copo pedindo ajuda e ansiando por pegar turistas que se sentem no dever de dar uns trocados para os pobres coitados – e quem negaria fazer uma boa ação na casa de Deus e do Papa?
Também não é exclusividade brasileira a tal da burocracia. Na verdade, a italiana me parece bem pior. Para abrir uma conta, gastei a manhã inteira (e meus outros amigos ficaram o dia inteiro e ainda tiveram que voltar no dia seguinte) e tive que assinar zilhões de papéis (sem exagero, assinei umas vinte vezes, e depois da décima eu só fazia um rabisco que acho que nem de longe passaria no reconhecimento de firma).
Para fechar um contrato de internet até que não se exige muito: um documento e o códice fiscale (código como o CPF, mas bem maior e com mistura de letras e números). Mas para rescindir o contrato não é nada – nada fácil. Para quem acha um saco ficar meia hora com a atendente da Net para cancelar a linha ou mudar o plano, experimente fazer essa solicitação na Itália: você precisa escrever uma carta e enviá-la (através da nada eficiente Posta, os Correios da Itália) para o diretor da operadora na cidade da Sede da Empresa com antecedência mínima de 15 dias justificando a solicitação de cancelamento.
E para quem reclama das taxas bancárias brasileiras, aqui se cobra até mesmo para transferir para contas do mesmo banco – e do mesmo titular! Cada transferência no caixa eletrônico custa um euro. Na boca do caixa tudo é mais caro e ainda tem mais fila e funcionários irritados e rabugentos. (Já imagino a dor de cabeça que será cancelar a conta do banco)
Não me esqueço do dia em que fui fazer a minha primeira transferência na boca do caixa. Depois de uns 40 minutos esperando para ser atendida, eu tive que preencher um formulário, colocando os dados da conta e o valor da transferência e, pasmem!, a quantidade de notas de cada valor. Exatamente: têm lá uns quadradinhos onde você põe quantas notas de 10, de 20 e de 50 euros você está entregando para o Caixa. Vai entender.
E não chegou ainda para eles o conceito de Internet Banking como forma de diminuir o trabalho dos funcionários e o tempo de espera nas filas. Para ter acesso ao serviço,  eu não posso simplesmente me cadastrar em um caixa eletrônico. Tenho que ir no atendimento ao cliente (e lá se vai mais no mínimo meia hora de espera) para solicitar, pagar cinco euros – e ainda posso acessar apenas meu saldo, sem poder fazer transferências ou qualquer outra movimentação (ao menos para quem é imigrante).
Deu para ver que ser imigrante aqui não é das melhores coisas né?
Também pudera. A Itália está passando por uma imensa crise. Estudantes universitários sabem que não terão emprego ao formar. Eles vão para a faculdade sem saber do futuro – e muitos tentam emigrar para outros países europeus (principalmente os italianos do Sul, onde a situação é pior ainda).
É assim: quem mora em cidades pequenas (os chamados paesini) vem para Roma tentar ganhar a vida. Quem mora em Roma vai para Milão. E quem é de Milão vai para outros países da Europa. Enquanto os indianos e chineses estão todos vindo para qualquer lugar da Itália. (sim, meus caros, esse é o nosso admirável mundo pós-moderno)
Também não chegou na Itália (ao menos não em Roma) o conceito de bom atendimento. A gente vai pedir alguma coisa para os atendentes, e eles sequer olham na sua cara. E quando olham é com cara feia. Não sabem sorrir. Não sabem dizer “Buongiorno”. Dizem um sério “Prego”, você pede o que quer, dá o dinheiro, eles jogam o troco e o cupom fiscal no suporte em cima do balcão e passam para o próximo cliente.
Vai ver é por isso que tem tanta loja e empresa falida por aqui. Eles acham que clientes brotam, não sabem que têm é que conquistá-los.
Mas o conceito que chegou aqui foi o de agilidade nas filas dos supermercados. Os funcionários do caixa passam os produtos em uma velocidade impressionante. Enquanto você pega seu cartão dentro da carteira, os produtos já estão todos lá para você por na sacola (que é sempre paga aqui). São tão eficientes que se acumulam mais clientes guardando as compras do que aguardando atendimento (não entendo porque não colocam também outro funcionário eficiente para ajudar a embalar).
Outra lenda a se desmentir é a do transporte público. Sim, ele pode funcionar relativamente bem em algumas cidades europeias, mas em Roma ele é caótico. Existem apenas duas linhas de metrô que se cruzam na sempre cheia Estação Termini, também estação de trem e terminal de ônibus e ponto de táxi e casa dos moradores de rua. (Agora estão construindo uma terceira linha, que já está ativa em alguns poucos pontos, mas que só ficará totalmente pronta daqui váaarios anos.) Se você não mora perto do metrô, precisa se virar com os ônibus (que com frequência estão lotados e são demorados por conta do tráfico – também caótico) ou com os trams (bondes de superfície, tão lentos que meus amigos dizem que compensa mais ir andando).
Eu sofro é com os tais dos trams. Ok, eles passam perto da minha casa e com uma frequência razoável nos dias de semana. Mas experimente pegá-lo em horário de pico (eu o fiz durante vários meses para ir para aula às 8h da manhã). É uma coisa meio darwiniana – uma verdadeira luta pela sobrevivência. Várias pessoas esperando no ponto e, enfim, passa um tram. Lotado – mais lotado do que o temido ônibus 020 em Goiânia. Descem duas pessoas, sobem cinco e não cabe mais nem uma mosca. E as outras 15 que não conseguiram entrar esperam o próximo – junto a mais uns 10 que estão chegando no ponto agora. E se acumulam pessoas. Você começa a entrar em desespero. Lá pelo terceiro ou quarto tram você consegue embarcar (se for esperto) e lá se vão uns 20 minutos (que mais parecem uma eternidade) para chegar à faculdade sendo espremida e sem conseguir mexer o braço ou a perna – literalmente podendo apenas piscar e (tentar) respirar e não cair durante as freadas. Um dia meu braço estava tão esticado para conseguir segurar em algum lugar que desci do tram até me sentindo mais forte – é quase uma musculação.
Sobrevive quem se adapta, diz a lei. E realmente os romanos se adaptaram. Em meio à muvuca no tram, era normal eu escutar pessoas fazendo piadinha da situação, ou reclamando com o desconhecido ao lado de que o transporte sempre foi assim, ou fazendo planos com o colega ou a irmã para acordar mais cedo no dia seguinte e tentar pegar o tram mais vazio, ou brigando com o cara do lado que o empurrou ou que não quer abrir espaço (como se fosse possível). De fato não deixava de ser divertido. Sem contar que com esse frio tinha muitos dias em que eu, no ponto sofrendo com o vento gélido, torcia para o tram vir cheio e assim eu me esquentar um pouco com o calor humano.
Tudo não passa mesmo de adaptação.
E cá estou, há quase cinco meses me adaptando à cidade de Roma.
Caótica. Mas cheia de História e de estórias para contar.

Não deixa de ser Roma, não deixa de ser linda, não deixa de ser um lugar onde um dia quero voltar (como turista, claro).

2 comentários:

  1. Lá como cá

    A mente humana é de uma riqueza e velocidade incríveis! Lendo ‘A Roma com que (nunca) sonhei’, me vi conduzido pela memória para o ponto final do eixo de transporte urbano Anhanguera, sentido oeste-leste da capital goiana, terminal onde frequentemente, anos atrás, eu embarcava no ônibus interurbano que liga Goiânia à cidade de Senador Canedo.
    Falar das esperas e do calor humano (em tempo de calor atmosférico!) forçado pelo excesso de lotação seria ‘chover no molhado’, depois de ler o texto de From Europe to Love, que ora comento, tal a semelhança. Por isso vou falar apenas de um dos muitos episódios que me marcaram nessas idas e vindas.
    Foi um diálogo e um monólogo, acontecidos em duas manhãs consecutivas. Na primeira manhã desci do coletivo do eixo urbano e fiquei a esperar o coletivo interurbano. Estação cheia, muitos risos, fofocas, xingamentos, namoros, brigas, desabafos, piadas e o puxa-empurra próprio dos horários de rush.
    Depois de quase meia hora de espera e de ver parar e sair ônibus para vários destinos, eis que surge o Goiânia-Senador Canedo. Os passageiros da espera se aglomeram no ponto de embarque, acenam... e o ônibus passa vazio e segue sem parar, com um solitário motorista que nem sequer olha para os aflitos e desesperados viajores. Comumente seguem para abastecimento ou para a oficina ou para a garagem mesmo.
    Mais uns quinze minutos de nova espera e eis que, novamente, surge o dito cujo coletivo com destino a Senador Canedo. Os passageiros, agora em número maior, acenam desesperadamente e, pela segunda vez, o ônibus passa vasio e segue sem parar... Aí, um garoto de mais ou menos dez anos de idade, pergunta:
    – Uai, pai, esse ônibus vai pra onde?!...
    – Vai é pro inferno!!! – respondeu o pai, colérico. Na verdade ele não estava respondeu à pergunta do filho, e sim desabafando sua ira.
    Na manhã do dia seguinte, lá estava eu nesse mesmo terminal. Os passageiros do horário eram costumeiramente os mesmos, com variações não muito expressivas. E lá estavam o pai e o filho do dia anterior. Reprise de um filme rotineiro: ônibus chegando e saindo, esperas, empurras, desabafos, críticas, correrias, risos... Depois de esperar por cerca de meia hora, eis que surge o coletivo Goiânia-Senador Canedo. E o motorista passa sem nem mesmo reduzir a velocidade, para desespero dos desesperados. Tudo como d’antes. Só o monólogo em forma de pergunta daquela mesma criança de dez anos quebrou a mesmice da manhã anterior:
    – Esse ônibus vai é pro inferno, né pai?!...

    (Jotamota)

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  2. Vazio é com z, jotamota. Bastou um rápido vazio na atenção para que eu lascasse um 'vasio' no texto. Mas também esse nosso Português é meio vazio de lógica, né?

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