sábado, 10 de janeiro de 2015

Concretude encenada – entre partidas


            Não sei que palavras eu usaria para adjetivar o espetáculo.  Inusitado? Insólito? Talvez. A crueza da vida retratada de modo onírico. Que paradoxo, não? Digo isso porque se amanhã me perguntassem o que vivi hoje, eu bem poderia responder: assisti a um espetáculo, mas me parece que foi apenas um sonho. Um sonho? Mas aquelas histórias, aqueles personagens tão reais, representando cotidianos tão palpáveis! É mesmo uma contradição.
            Entrepartidas. É o nome dessa peça teatral, da Companhia Teatro do Concreto. E poderia eu chamá-la de peça? Ela é em si um todo entrecortado de realidades que por si mesmas eram vários todos complexos. Tanto parecia realidade que no início, todos já na rua ao lado do ônibus ouvindo o diretor falar, um casal começa a brigar, gritar e se agredir. “Nossa, isso vai atrapalhar o andamento do espetáculo”, logo pensei. Até descobrir que ali, no meio das explicações do diretor, havia começado a – inusitada – encenação.
            Logo vi que seriam horas de realidade sonhada que me deixariam confusa, sem saber o que era encenação, o que era ensaiado, o que era improvisado, o que era realidade e o que era ficção.
            Entramos no ônibus. O motorista meio real meio ator nos pede para escrever no papel o que gostaríamos de levar conosco se aquela fosse a nossa última viagem. “Caderno e caneta”, eu escrevi, e também a memória e o olhar. E faço uso disso agora para escrever sobre essa viagem que não foi a última mas que foi tão marcante que é como se o fosse.
            “Não filmem ou fotografem”, disse o diretor no começo. Sinto muito, caro diretor, pois te afirmo que fotografei, sim. Ora, palavra também serve para tirar fotografia do momento, me ensinou Elisa Lucinda. Então escrevo agora como modo de revelar as fotografias que tirei durante Entrepartidas, revelá-las a mim mesma, torná-las mais claras tirando-as através das palavras do obscuro de mim.
            Elisa Lucinda. Ela me presenteou e presentificou nesse espetáculo. Logo nos primeiros minutos, enquanto o motorista contava suas histórias para a moça que pegou uma carona no nosso ônibus, me veio à mente essa linda poetisa carioca. Vi aquela cena como semelhante aos contos de Elisa sobre os taxistas e suas histórias tantas.
            Alguns poucos minutos depois, na primeira parada, na Avenida Goiás com a Rua Um, não é que a moça que não sabe seu nome sua origem e seu futuro pega dentro da bolsa um livro de Elisa Lucinda e recita uma poesia? Realidade ou ficção?, me pergunto novamente.
            Como responder?, se aquelas cenas todas nas ruas e no ônibus, aquelas histórias começaram a me absorver de um tanto que eu mesma já não sabia se meu próprio eu era verdade!
            Vieram novas cenas, novas paradas, novos personagens, novos cenários por entre as ruas, pontos turísticos e casas do centro de Goiânia. O travesti que a cada esquina manifestava seu desejo suicida. Os dois moradores de rua que cuidavam das flores do coreto – o mais velho tentando gentegrandizar as meninices do pequeno que o chamava de irmão. A linda negra sem rumo que recitava poesias para sobreviver – e que era em si mesma poesia pura. A mulher que morava com seus dragões da loucura e da doença, empecilhos à felicidade dela e ao seu desejo de cuidar do filho e morar com ele. A mulher que veio do exterior para visitar a mãe – matar a saudade do interior do ventre materno de onde ela veio. O homem que parte para o exterior deixando a saudade no namorado que fica – só com a tristeza. A mulher que parte para a vida com um homem dizendo adeus à sua namorada.
            Realidades. Encenadas contudo nuas e cruas assim como elas são. Tapas na minha cara. Não foram doces, não. Foram tapas fortes e intensos. Realmente duros. Um pouco amaciados pela contradição realidade-ficção – mas duros.
            Várias vidas retratadas em três horas, o espetáculo vai se encerrando. O motorista vai rodeando a praça cívica e pegando nos pontos de ônibus os atores – aproximando-se da hora de retomarem os seus personagens reais. Chegamos ao ponto de partida, descemos do ônibus, ele se vai carregando em cima o travesti. Aplaudimos. Enquanto isso os atores todos saem imperceptivelmente do nosso meio. Acaba o espetáculo. Sem os típicos aplausos finais e agradecimentos. Nu e cru assim mesmo. E ao mesmo tempo aquilo tudo me parecia uma mágica – uma grande ilusão. Atores histórias e ônibus foram embora. Restaram os espectadores. Apenas nós, encenadores de nós mesmos, sem entender muito a concretude daquilo tudo.
            Olho para o céu. Aquela lua lindamente cheia põe fim ao espetáculo. O espetáculo que ainda assim não se finda – se eterniza em mim me desvelando que a vida – é imensidão.


Larissa Mota

27.out.2012

Um comentário:

  1. Salve Elisa Lúcida & Linda, brava poetisa da vida desnuda de artifícios.
    Curtimos, juntos (eu e a criadora deste Blog), em duas oportunidades, Elisa Lucinda declamando seus versos e contando prosa sobre sua vida, suas criações, seu cotidiano... Ela, em pessoa, já é uma harmonia de contrastes: uma negra brasileira de cabelos crespos, que nos olha com seus olhos verdes de europeia (descendente de espanhóis, como meu avô? Sei lá...); às vezes aparentando delicada e frágil, outras, rústica e destemida; suplicante e acusadora, ao mesmo tempo...
    E como declamava bem, encenando – ou vivendo intensamente? – os paradoxos da vida! Lembro-me do poema em que numa sólida construção de inférteis tijolos e cimento surgiu uma fenda; com a chuva, um minúsculo broto de vegetal surge nessa fenda, numa quase inglória luta contra o inóspito "útero de concreto" em iminente processo de aborto... Mas na ânsia da vida por si mesma, como diria Khalil Gibran, a planta rústica persiste, cresce e se veste de delicadas flores... Quiçá, nem o poderoso Caio Júlio Cesar da Roma Antiga tenha se vestido com tanta beleza!
    Não tive o privilégio de assistir o espetáculo Entrepartidas, mas na enfática descrição de Larissa Nunes Mota eu me vi também como espectador de cenas que se sucederam dentro de mim, reais e lúdicas, com quadros do dia a dia e personagens que se iludem ou se desiludem ou que também se realizam ao desnudar a vida de seus artifícios.
    Somos espectadores ou atores?... Os dois se confundem, penso, quando a arte imita a vida. E independente das levezas e durezas dos palcos em que interpretamos ou vivenciamos nossos cotidianos, sinto que o importante é encarar de frente nossas realidades, escolhidas ou impostas, superando desilusões, cultivando sonhos e, em quaisquer circunstâncias, nos nutrindo de conhecimentos nos cenários da vida. E assim imitando a planta em flor do poema. Elisa?... É Lara, lúcida, linda!
    Jotamota

    ResponderExcluir